O ouro líquido do cerrado – conhecendo a gastronomia com pequi e seus contrastes

Poucos sabores despertam tantas memórias e controvérsias quanto o do pequi, uma fruta que é, ao mesmo tempo, paixão e polêmica no coração do Brasil. Com seu aroma inconfundível e sabor intenso, o pequi é muito mais que um ingrediente: é um verdadeiro símbolo do Cerrado, carregando em sua polpa amarelo-vivo a história, a identidade e a resistência das comunidades que vivem nessa região.

Chamado por muitos de “ouro líquido do Cerrado”, o pequi ganhou esse título não só pela cor e pelo brilho do óleo extraído de seu caroço, mas também pelo seu valor nutricional, medicinal e cultural. Seu óleo é um tesouro multifuncional – usado tanto na culinária quanto em cosméticos e medicamentos naturais –, e representa uma fonte de renda sustentável para várias famílias do interior do Brasil.

Neste artigo, te convidamos a embarcar em uma jornada sensorial e cultural para conhecer os sabores, contrastes e curiosidades do pequi. Vamos explorar desde os pratos tradicionais que o tornam tão especial até as razões pelas quais ele desperta amor incondicional em uns e estranhamento imediato em outros. Afinal, com o pequi não existe meio-termo: ou se ama, ou se respeita.


O que é o Pequi?

O pequi (Caryocar brasiliense) é uma fruta típica do Cerrado brasileiro que, à primeira vista, pode até parecer discreta. No entanto, por trás de sua casca esverdeada e resistente, esconde-se uma polpa de cor amarelo-ouro, rica em óleo, com um sabor marcante e um aroma inconfundível que invade a cozinha antes mesmo da panela ferver.

Seu gosto é intenso, terroso, levemente amanteigado e adstringente – uma experiência sensorial única, quase sempre inesquecível, seja pela surpresa ou pelo prazer. O cheiro do pequi também é poderoso: pungente, perfumado e capaz de dividir opiniões logo na primeira colherada.

Natural do Cerrado, o pequi nasce de uma árvore frutífera nativa que pode atingir até 10 metros de altura. Essa árvore é extremamente resistente às secas e adaptada ao solo pobre da região. A frutificação ocorre principalmente nos meses secos do ano, entre setembro e janeiro, marcando o calendário das colheitas em estados como Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Minas Gerais e o oeste da Bahia.

Além de ser um ícone gastronômico, o pequi tem grande importância ecológica e cultural. É uma espécie nativa que ajuda a conservar o equilíbrio ambiental, oferecendo alimento para aves, mamíferos e seres humanos. Sua coleta, muitas vezes feita de forma artesanal e familiar, mantém viva a tradição de gerações que aprenderam a respeitar seu tempo, seu sabor e seus espinhos escondidos dentro do caroço – que, por sinal, exigem cuidado redobrado para não machucar a boca.

Mais do que uma fruta, o pequi é um elo entre a natureza e a cultura popular do Cerrado, presente em lendas, músicas, pratos típicos e memórias afetivas de quem cresceu em meio ao cerrado seco e vibrante do Brasil central.


Por que é chamado de “ouro líquido”?

O apelido “ouro líquido” não é à toa. O pequi guarda em seu interior um verdadeiro tesouro: um óleo denso, de cor amarelo-intensa e aroma marcante, que é valorizado tanto por seu potencial nutricional e medicinal quanto por seus múltiplos usos na culinária e na indústria de cosméticos.

O óleo de pequi é extraído artesanalmente a partir da polpa ou da amêndoa da fruta, através de um processo que envolve cozimento lento, prensagem e decantação. O resultado é um líquido espesso e dourado, rico em ácidos graxos essenciais, vitamina A, carotenoides e antioxidantes naturais. Seu consumo está associado a diversos benefícios à saúde, como ação anti-inflamatória, melhora da imunidade e proteção cardiovascular.

Na cozinha, esse óleo é puro sabor. É usado para finalizar pratos típicos como arroz com pequi, galinhada e ensopados, conferindo uma profundidade de gosto que remete à terra, ao calor e à ancestralidade. Já na cosmética natural, o óleo de pequi vem ganhando espaço como base de hidratantes, shampoos e cremes, especialmente por suas propriedades emolientes e regenerativas para pele e cabelos.

Além de todos esses atributos, o valor econômico e social do óleo de pequi é imenso. Ele representa uma importante fonte de renda para famílias e cooperativas agroextrativistas do Cerrado, que desenvolvem práticas sustentáveis de coleta e beneficiamento da fruta. Esses grupos preservam técnicas tradicionais, evitam o desperdício, e garantem que o processo seja o mais ecológico possível, respeitando os ciclos da natureza e promovendo o comércio justo.

Assim, o pequi se transforma – da árvore ao prato – em um verdadeiro símbolo de riqueza natural, cultural e econômica, justificando plenamente o título que carrega com orgulho: o ouro líquido do Cerrado.


O pequi na gastronomia tradicional do Cerrado

Na cozinha do Cerrado, o pequi é rei. Seu sabor forte, terroso e único é ingrediente central em receitas que atravessam gerações e compõem a identidade alimentar de diversos povos do Brasil central. Para quem nasce ou vive na região, pratos com pequi não são apenas comida – são memória, afeto e pertencimento.

O mais famoso talvez seja o arroz com pequi, preparado com poucos ingredientes, mas com um sabor inconfundível. A fruta é cozida junto ao arroz, liberando seu óleo dourado e aroma característico, o que transforma um prato simples em uma explosão de sabor. Outra estrela da culinária local é o frango com pequi, muitas vezes servido em panelas de barro, acompanhado de quiabo ou milho verde. O contraste entre a carne macia e o gosto marcante do fruto é o que torna essa receita tão especial.

Além dos pratos salgados, o pequi também é protagonista em preparações como licores, conservas e pastas. O licor de pequi, por exemplo, combina doçura com o aroma forte da fruta, sendo presença comum em festas populares e comemorações regionais.

Nos últimos anos, o pequi tem conquistado novos espaços na gastronomia contemporânea. Chefs de cozinha passaram a valorizar ingredientes do bioma Cerrado em releituras criativas e sofisticadas, que vão desde risotos com infusão de óleo de pequi até massas artesanais, molhos e sobremesas com toques inusitados da fruta. O óleo, em especial, vem sendo usado como um condimento refinado, semelhante ao azeite trufado, em pratos que equilibram o rústico e o elegante.

Essa versatilidade mostra como o pequi transita com naturalidade entre a culinária caseira e a alta gastronomia. Enquanto, em muitas casas do interior, o fruto é cozido de forma simples, diretamente na panela de pressão da avó, nos restaurantes mais sofisticados ele ganha nova roupagem – mas sem perder sua essência bruta, viva e cheia de personalidade.

Do fogão a lenha ao menu degustação, o pequi continua a provar que sua força está não apenas no sabor intenso, mas na sua capacidade de unir mundos, histórias e paladares.


Os contrastes do sabor e da aceitação

Poucos ingredientes da culinária brasileira causam tanta divisão quanto o pequi. Para muitos, é amor à primeira garfada; para outros, um sabor que exige coragem. Esse contraste entre paixão e repulsa não é exagero – o pequi realmente divide opiniões como poucos alimentos são capazes de fazer.

Seu sabor é intenso, terroso, levemente amargo e com notas que lembram especiarias e fumaça. Já o aroma, penetrante e persistente, pode ser sentido à distância, antecipando a experiência que vem pela frente. A textura oleosa da polpa, que se solta do caroço em pequenos pedaços dourados, também contribui para essa vivência sensorial forte, que muitos descrevem como um verdadeiro “choque cultural gastronômico”.

Mas o que torna o pequi ainda mais polêmico é o detalhe escondido em seu interior: o caroço, que contém espinhos microscópicos e dolorosos. Quem morde o pequi sem saber disso costuma nunca mais esquecer a lição — e essa primeira vez se torna quase um rito de passagem para os iniciantes. Por isso, o conselho é sempre o mesmo: “chupe com cuidado, sem morder!”

Muitos relatos sobre a primeira experiência com pequi são curiosos e até engraçados. Há quem jure nunca mais chegar perto, e há quem diga que, depois do susto inicial, se apaixonou de vez. Um turista paulista, por exemplo, contou que pensou estar comendo um prato estragado ao provar arroz com pequi pela primeira vez — só para, meses depois, se declarar fã número um da fruta e aprender a prepará-la em casa.

Essa relação de amor e ódio com o pequi é, na verdade, parte do seu charme. Não é uma fruta feita para agradar de imediato ou para todos os paladares, mas sim para quem se dispõe a entendê-la, respeitá-la e, quem sabe, se apaixonar.

No fim das contas, o pequi ensina algo além do sabor: que a comida também é sobre memória, paciência e reconexão com o tempo da natureza. E isso, para quem aprende a apreciar, vale cada colherada.


Sustentabilidade e preservação do pequi

Muito além do sabor marcante e das tradições culinárias, o pequi é também um símbolo de resistência ambiental e social no Cerrado brasileiro. Preservar o pequi significa preservar não apenas uma fruta, mas todo um modo de vida, uma cultura e um ecossistema.

A coleta do pequi é feita, em sua maioria, por comunidades extrativistas locais, que seguem os ciclos naturais da planta. A colheita acontece de forma manual, no chão, após os frutos caírem naturalmente da árvore – um processo que respeita o tempo da natureza e evita o esgotamento da planta. Essa prática, conhecida como extrativismo sustentável, é essencial para garantir que o fruto continue disponível para as próximas gerações, sem causar danos ao ambiente.

Em várias regiões do Cerrado, cooperativas e projetos comunitários têm se organizado para transformar o pequi em fonte de renda e autonomia. Grupos como a Cooperativa Grande Sertão (MG) e a Central do Cerrado (DF) trabalham com o beneficiamento artesanal da fruta, a produção de óleo, conservas e cosméticos naturais, promovendo o comércio justo e incentivando práticas sustentáveis. Além disso, essas iniciativas ajudam a valorizar os saberes tradicionais, muitas vezes passados de geração em geração, e a manter famílias no campo, contribuindo para a soberania alimentar e a proteção cultural da região.

No entanto, os desafios são muitos. O Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil e também um dos mais ameaçados, com altíssimos índices de desmatamento, queimadas e expansão agropecuária descontrolada. Essa pressão sobre a terra coloca em risco não apenas a sobrevivência do pequi, mas também a biodiversidade única da região e os modos de vida das comunidades que dependem dela.

Proteger o pequi é, portanto, um ato de preservação ambiental, social e cultural. É reconhecer o valor de um fruto que alimenta, cura e sustenta — e que nos lembra que há sabedoria no tempo da natureza, no cuidado com a terra e na simplicidade das coisas feitas com as mãos.

Ao consumir pequi de forma consciente e valorizar produtos de origem sustentável, contribuímos diretamente para a manutenção do Cerrado vivo e para a continuidade de uma herança que vai muito além do prato.


Onde provar pratos com pequi

Para quem deseja experimentar o pequi em sua forma mais autêntica, o ideal é visitar as regiões onde ele faz parte do dia a dia e da identidade cultural local. No coração do Brasil, cidades e vilarejos inteiros celebram essa fruta com pratos tradicionais, festas e muita história à mesa.

Os estados de Goiás, Tocantins e o norte de Minas Gerais são verdadeiros redutos do pequi. Em Goiânia (GO), por exemplo, é fácil encontrar arroz com pequi em restaurantes populares e até em redes de comida rápida regional. Já em cidades do interior como Pirenópolis, Crixás, ou São Jorge (na Chapada dos Veadeiros), o fruto é estrela de receitas servidas com afeto e sotaque goiano.

No norte de Minas Gerais, especialmente nas regiões de Montes Claros, Janaúba e Salinas, o pequi aparece em versões ainda mais rústicas, combinando com frango caipira, quiabo e angu. É também onde se encontram licores e conservas artesanais vendidas em feiras locais, como a Feira de Agricultura Familiar e Agroecologia de Montes Claros.

Tocantins, por sua vez, é outro território onde o pequi reina absoluto. Em cidades como Palmas e Porto Nacional, é comum ver o fruto em pratos típicos e nas prateleiras de mercados e feiras livres, especialmente na época da colheita, entre setembro e janeiro. O Festival Gastronômico de Taquaruçu, realizado anualmente em Palmas, é uma excelente oportunidade para provar pratos criativos e tradicionais com pequi, preparados por chefs locais e cozinheiros da região.

Dicas para quem quer provar pequi pela primeira vez:

Experimente pratos clássicos como arroz com pequi ou frango com pequi antes de se aventurar por releituras modernas. O sabor autêntico costuma ser mais marcante nos preparos tradicionais.

Pergunte sobre o preparo: em alguns lugares, o pequi é servido com o caroço, que exige cuidado ao comer para não morder os espinhos internos.

Visite feiras e mercados locais para encontrar versões artesanais da fruta – como conservas, pastas e óleos – ideais para levar um pedacinho do Cerrado para casa.

Se for à região durante a safra (setembro a janeiro), aproveite para experimentar o fruto fresco, colhido no tempo certo e com sabor ainda mais especial.

Provar o pequi é mais do que uma refeição: é uma experiência cultural e sensorial que conecta o viajante ao Cerrado profundo, com sua biodiversidade, sua gente e sua culinária rica em identidade e sabor.


Dicas para quem vai experimentar o pequi pela primeira vez

Se você está prestes a provar pequi pela primeira vez, prepare-se para uma experiência única. O sabor marcante, o aroma inconfundível e a textura oleosa fazem do pequi um fruto memorável — mas, como toda iguaria de personalidade forte, ele exige respeito e alguns cuidados, especialmente no primeiro contato.

Atenção ao caroço: o famoso alerta dos espinhos

O pequi é conhecido tanto pelo sabor quanto pelo risco de surpresa para os desavisados: nunca morda o caroço! A polpa do pequi envolve uma semente coberta por espinhos microscópicos e duros que podem ferir a boca. Por isso, o modo certo de consumir é chupar com cuidado, retirando apenas a polpa superficial com os dentes, sem pressão. É um gesto quase cerimonial, passado de geração em geração — e parte do charme de comer pequi.

Receitas suaves para iniciantes

Para quem está começando, o ideal é começar com preparações em que o sabor do pequi esteja presente, mas não dominante. Algumas boas opções:

Arroz com pequi suave: cozido com poucos pedaços do fruto e bastante água, o arroz absorve o aroma do pequi sem exageros.

Frango ensopado com pequi: o caldo dilui o sabor e permite uma combinação mais equilibrada com outros ingredientes.

Pasta de pequi ou conserva suave: opções ideais para passar no pão ou usar como tempero, em quantidades pequenas.

Licor de pequi: ótima forma de sentir o aroma e a essência da fruta em um contexto doce e mais leve.

Harmonização: com o que combinar o pequi

O pequi tem um sabor muito característico, então ele combina melhor com ingredientes que equilibram sua intensidade, como:

Carnes suaves: frango caipira, carne de panela ou até peixe de sabor neutro.

Grãos e raízes: arroz, milho, mandioca e batata-doce são ótimos coadjuvantes.

Folhas verdes e legumes: couve refogada, quiabo ou abóbora cozida ajudam a suavizar o conjunto do prato.

Pimentas suaves, limão ou hortelã: usados com moderação, trazem contraste e frescor.

A chave está na moderação: o pequi não é um tempero qualquer, é um protagonista. Usado com equilíbrio, ele transforma pratos simples em uma experiência de Cerrado autêntica.


Conclusão

Mais do que um ingrediente, o pequi é um patrimônio vivo do Cerrado — um fruto que carrega, em seu sabor forte e aroma marcante, a história de um povo, a resistência de um bioma e a riqueza de uma cultura alimentar profundamente enraizada no Brasil central.

Ao longo deste artigo, vimos que o pequi vai muito além da cozinha: ele é símbolo de identidade, sustentabilidade e tradição, presente tanto nas mesas simples do interior quanto nas criações sofisticadas da alta gastronomia. Seu apelido, “ouro líquido”, é justificado não apenas pela cor e pelo óleo precioso que se extrai da fruta, mas pelo valor inestimável que representa para as comunidades locais e para o meio ambiente.

É verdade que seu sabor divide opiniões. O pequi não busca agradar a todos — ele convida à descoberta, ao respeito e à experiência sensorial intensa. E é justamente nesse contraste entre amor e rejeição que mora seu encanto. Quem se permite provar, com mente aberta e curiosidade no paladar, pode encontrar um novo favorito ou, no mínimo, uma história para contar.

Se você ainda não experimentou, fica aqui o convite: explore os sabores do Cerrado, visite feiras, converse com quem conhece e prepare-se para algo fora do comum. Porque provar pequi é mais do que comer — é vivenciar um pedaço do Brasil profundo, saboroso e cheio de alma.

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